Gramadense denuncia que quase perdeu a vida por negligência médica e falta de estrutura no Hospital Arcanjo São Miguel

A gramadense Francine Bossardi denunciou que quase perdeu a vida devido à negligência médica e falta de estrutura adequada para atender gestantes no Hospital Arcanjo São Miguel. Francine enviou relato detalhado do que passou e disse estar viva por um milagre. Segue abaixo relato completo, na íntegra:
“No dia 13 de junho de 2023, eu Francine Bossardi, à época gestante de 6 semanas e 6 dias, tive uma dor muito forte e abrupta às 17h35, seguida de vômito, sensação de que iria desmaiar, mãos formigando e visão turva. Fiz contato para que meu marido me buscasse no trabalho e às 17h40 já estávamos à caminho do Hospital Arcanjo São Miguel, no Município de Gramado/RS.
Às 18h08 já estávamos em triagem com a equipe de enfermagem, onde foram relatados esses sintomas e verificaram que minha pressão estava baixa (pág 23 da cópia do prontuário enviado).
Em seguida, passei por atendimento médico na emergência, onde aguardei menos de 10 minutos.
O atendimento foi realizado pela médica emergencista de plantão. Mesmo procedimento: relatei meus sintomas e a médica disse que eu provavelmente estaria sofrendo um aborto. Prescreveu buscopan composto para alívio da dor e me orientou a retornar cedo no outro dia, visto que o hospital só tinha ecografia disponível até às 11h da manhã.
Ou seja, sua conduta foi medicação e ALTA. Argumentou que com 6 semanas e 6 dias de gestação nada poderia ser feito em relação a um aborto. Eu disse que não esperaria até o outro dia, que após a medicação eu procuraria um hospital em Caxias do Sul. A médica completou dizendo que gostaria de poder fazer mais, mas não tinha alternativas.
A médica sequer olhou minha barriga. No entanto, consta em meu prontuário médico uma avaliação física que diz: “lúcida e orientada, abd - flácido, inocente, sem peritonismo, dor a palpação superficial e profunda em BV” (pág 23 da cópia do prontuário enviado).
Como alguém pode descrever uma dor a palpação em algo que nunca apalpou? Ou sequer olhou? Claro que eu só soube disso após a minha alta e solicitação de cópia do prontuário.
Bem, após a “avaliação” médica, fui então para a sala de medicação, com planos de assim que possível buscar um serviço que pudesse verificar se de fato eu estava sofrendo um aborto. Nesse momento, solicitaram que meu marido saísse dali e aguardasse na recepção.
Após aproximadamente 2h30min na emergência recebendo buscopan composto, plasil e soro, fui reavaliada por outro médico,depois da troca de plantão da emergência.
Só então chamaram o obstetra para me avaliar, solicitaram exame de sangue e solicitaram que a ecografia (que às 18h “não existia”) da UTI fosse levada até a emergência, para utilização do obstetra assim que ele chegasse. Foi nesse momento também que permitiram a presença do meu marido novamente.
Ou seja, a médica que referiu querer poder fazer mais por mim - e não fez - poderia ter chamado o obstetra de plantão (que às 18h estava dentro do hospital), poderia ter solicitado um exame de sangue, e poderia ter solicitado que a ecografia da UTI fosse levada até a emergência.
Quando o resultado do meu exame de sangue chegou, com coleta realizada às 21h, minha hemoglobina era de 7,3 g/dL (meu basal é 13,7 g/dL, conforme exame feito um dia antes do ocorrido), indicando que eu estava sangrando e que depois de 3h25min da dor abrupta eu tinha perdido aproximadamente metade do meu sangue.
Nesse momento o obstetra chegou e eu já estava deitada na maca. Ele me perguntou se eu havia sentido alguma dor muito súbita (o que eu confirmei), olhou a ponta dos meus dedos do pé, já hipocorados, e disse para a equipe: “o que vocês estão fazendo aqui que não viram que a guria está morrendo?”
Em seguida, nos explicou que eu havia tido uma gestação ectópica (o embrião tinha fixado em uma trompa), que a dor súbita que senti era minha trompa rompendo, e que eu estava com uma hemorragia interna em função dessa ruptura, Disse, ainda, que era necessária uma cirurgia urgente e que faria tudo o que pudesse para me salvar, pontuando que haveria a necessidade da retirada da trompa que rompeu e possivelmente um ovário.
A equipe de enfermagem orientou que aquele era o momento de dizermos, meu marido e eu, tudo que quiséssemos um ao outro. Eu estava apavorada, não conseguia dizer nada, só conseguia pensar que não podia morrer, e que também amava meu marido enquanto ele dizia que me amava.
A partir daí, há alguns borrões na minha memória. Lembro de passar pelos corredores na maca, e lembro de já no bloco cirúrgico precisar vomitar mais uma vez e o anestesista me dizer algo do tipo “eu realmente preciso te anestesiar agora porque precisamos te operar agora”.
Perdi trompa esquerda e ovário esquerdo.
Minha cirurgia ocorreu das 22h15 às 23h15. Meu primeiro hemograma na UTI, com coleta às 23h37, mostrou uma hemoglobina de 4,6 g/dL (nesse ponto, eu já havia recebido uma bolsa de CHAD, ou seja, um concentrado de hemácias, durante a cirurgia). Recebi posteriormente mais sangue. Fato: um nível de hemoglobina de 4,6 g/dL APÓS receber uma bolsa de CHAD demonstra claramente o quão grave era meu quadro no momento em que fui encaminhada para o bloco cirúrgico, especialmente considerando o resultado absolutamente normal do nível de hemoglobina de um dia antes.
Antes da minha alta, o médico que me reavaliou na emergência passou pelo meu quarto para nos explicar, ao meu marido e a mim, a causa da demora para me reavaliar. Ele explicou que como eu já tinha avaliação e conduta de alta feita pela colega dele, só houve o entendimento de necessidade de reavaliação quando alguém da equipe da enfermagem reforçou que eu era gestante e que seguia vomitando, desmaiando, com pressão baixa.
O obstetra que me operou estava no hospital às 18h quando a médica da emergência, fez minha avaliação e me deu alta. Ela não acionou obstetra para avaliar o que ela acreditava que fosse um aborto simples, apesar de descrever inclusive que eu estava com “palidez cutaneo mucosa”, o que é decorrente da pouca quantidade de hemoglobina circulante, ou seja, sinal de algum sangramento.
Por que não pedir a avaliação de um obstetra à uma gestante relatando dor abrupta no abdômen, visão turva, vômito, mãos formigando, com pressão baixa?
O obstetra que me operou diz que eu sou um milagre e que eu não teria resistido a mais alguns minutos de espera.
O plantão obstétrico em Gramado é de sobreaviso, o que quer dizer que o médico pode não estar dentro do hospital, sendo chamado para atendimento conforme necessidade. Se ele tivesse demorado quando foi chamado eu teria morrido.
Quem conhece Gramado sabe que existem épocas do ano em que fica impossível , devido ao trânsito, circular pelo centro da cidade, onde fica o hospital. Um deslocamento entre Gramado e Canela, que em condições normais leva cerca de 15 minutos, pode passar de 1 hora em épocas de maior movimento.
Quantas mulheres precisam morrer para que seja implantado um plantão presencial de obstetra?
Quantas mulheres precisam morrer para que se tenha uma ecografia factível 24h por dia?
Quantas mulheres precisam morrer para que se implemente um protocolo que diga que gestantes precisam ser atendidas por obstetras?
De acordo com a Prefeitura Municipal de Gramado (https://www.gramado.rs.gov.br/noticias/turismo/gramado-registra-aumento-no-numero-de-visitantes-em-relacao-ao-ano-passado), a cidade recebeu 3.240.319 turistas de janeiro a maio de 2023. Em média, a cidade recebe 648.063 turistas por mês.
Vale lembrar que o Hospital Arcanjo São Miguel é referência de toda a população gramadense e de todos esses turistas que circulam pela cidade.
Impossível pensar que entre mais de 3.500 pessoas, apenas eu tenha precisado de um exame de ecografia após as 11h da manhã naquele mês.
São inúmeros os relatos que já ouvi de amigas, conhecidas, e colegas, passando por abortos, que procuraram o hospital e receberam a orientação de voltar no outro dia porque o hospital só tem ecografia disponível até às 11h. E simplesmente prescrevem uma medicação pra dor e mandam a gestante abortando pra casa, pedindo que retornem no outro dia para terem certeza de que era mesmo um aborto.
Sugeriram na cidade que eu não tenho direito a pleitear um plantão obstétrico presencial por eu usar o serviço particular de outro município.
Vale lembrar que eu procurei o serviço particular de outro município após um diagnóstico de infertilidade. Gramado não tem especialistas em fertilidade. Meu encaminhamento para especialista em fertilidade pelo SUS completa 1 ano em setembro, e sigo aguardando ser chamada para primeira consulta. Além disso, sou residente de Gramado. Me pergunto: onde são recolhidos os impostos pagos por mim e pelo meu companheiro? O que diz o princípio básico da universalidade no SUS?
Sugeriram também na cidade que eu estou contaminada.
Realmente, estou contaminada pelo desejo de transformar toda a dor e toda a situação absurda pela qual eu passei em luta para que outras mulheres não passem por nada sequer semelhante. Para que outras pessoas não sejam submetidas ao trauma que eu e meu marido ainda estamos superando. Para que uma gestante, ao chegar no hospital de Gramado, tenha direito de ser avaliada por um obstetra, e que esse direito seja respeitado, ainda que ela nem sonhe que esse direito exista (ou seja: protocolo!
Gestante tem que ser atendida por obstetra!); para que essa mulher tenha possibilidade de fazer uma ecografia quando necessário independente do horário do dia; e para que o plantão obstétrico seja presencial.
Em relação ao atendimento prestado pela médica da emergência, já foi encaminhada denúncia junto ao CREMERS para que sejam tomadas as devidas providências. Uma médica emergencista deveria saber avaliar uma ruptura de gestação ectópica! O que aconteceu não tem justificativas que minimizem a irresponsabilidade e a negligência do atendimento prestado naquele dia por ela. Ora, sequer olhar meu abdômen e ainda assim descrever uma avaliação com palpação abdominal?
No entanto, compete à instituição ter protocolos e estrutura para que erros de avaliação não custem a vida de uma pessoa.
Foi encaminhada denúncia à ouvidoria do Hospital Arcanjo São Miguel para que sejam adotadas medidas para que situações como essa não mais se repitam. Quais sejam: adoção de protocolo para atendimento de gestantes (gestante tem que ser atendida por obstetra!); ecografia factível independente do horário do dia; e plantão obstétrico presencial.
Entendo que o Município de Gramado enquanto interventor do Hospital Arcanjo São Miguel e instituição responsável pela saúde no município tem como função adotar as medidas citadas anteriormente no atendimento às gestantes”.